Disse Fernando Pessoa que “o mito é o nada que é tudo” e esta definição pode aplicar-se à lenda que surgiu em torno da vida de João Victor da Silva Brandão (1825-1880).
Na verdade, o mito surge e alastra a partir de uma “história de fundo lendário” que se desenvolve desde criança e por vezes vai até à idade adulta, conforme sustenta Fernando Ilharco: “a tendência constitucional para a mentira, para forjar acontecimentos imaginários (fabulação) e para simular estados orgânicos anormais simulados. É uma disposição muitas vezes hereditária e mais freqüente na mulher”
Entretanto, deixemos o mito e recordemos que João Victor nasceu e cresceu num ambiente que vai desde a participação do seu pai nas lutas liberais que assinalaram o cerco do Porto até à actividade guerrilheira travada pelos beirões (que na maioria dos casos terão sido contrários ao autoritarismo do Rei D. Miguel). E se ultrapassarmos o tempo, teremos de convir que havia guerrilheiros de ambos os lados – e não de um só! Não obstante, a lenda formou-se preferencialmente em torno de João Brandão, como se os tiros não fossem também disparados pelos miguelistas, apesar de serem conhecidas às violências desferidas contra inúmeros liberais, de acordo com os testemunhos daqueles que sobreviveram à tragédia que abalou quase toda a região, com destaque para a Beira-Serra. E da profusa documentação em jornais e revistas destacamos agora o volume “Apontamentos da vida de João Brandão por ele escritos nas prisões do Limoeiro envolvendo a História da Beira desde 1834”
Para lá das informações do autor, que descreve os acontecimentos que viveu de perto, salientamos a “Relação dos ferimentos e mortes praticados na Província da Beira, desde 1834”: foram 235 mortos, incluindo 21 abatidos pelas forças da ordem (militares e guardas civis), além de 13 sacerdotes e seus familiares, bem como 6 assassinatos atribuídos à guerrilha de Agostinho Vaz Pato e de muitos outros pequenos grupos e pessoas, nalguns casos identificados. De um lado, aponta-se a cooperação das “forças da ordem” absolutistas e, paralelamente, a violência contra os padres, vários dos quais estiveram presos em virtude das suas idéias liberais.
Deduz-se de todos estes esclarecimentos que as intervenções de João Brandão não foram as de um bandido vulgar, mas, sim, as de um político militante, que seguiu o liberalismo de seu Pai, combatendo sempre o autoritarismo absolutista; Se cometeu os excessos dos guerrilheiros, os dos miguelistas não foram menores, embora “o mito que é tudo” haja resvalado para o defensor da Rainha (que nunca deixou de apoiar os beirões liberais).
Segundo revela o professor José Manuel Sobral, que prefaciou a 2ª.edição dos
Apontamentos da vida de João Brandão”, o “mito” que beneficiou os adversários de João Victor da Silva Brandão era romântico, porém falso, mas vingou ao ponto de se transformar numa espécie de “hino” dos cantores cegos e provincianos de Lisboa e de aldeias, anunciando os “crimes” de J. B. e a sentença injusta do tribunal de Tábua que o condenou ao degredo em Angola (o júri era formado por um Vaz Pato e por diversos inimigos políticos). E o mito virou lenda, que também nós escutámos em criança, sem entender as origens da tragédia da guerra civil da Beira-Serra).
Muito mais é preciso contar e documentar acerca do liberal indomado de Midões. Insisto neste ponto para honrar a memória do meu avô paterno (que era “midoense” e nada teve com a ideologia de João Brandão), mas insurjo-me contra o julgamento inadmissível de quem o condenou ao degredo, sabendo que até em Angola foi ilegalmente perseguido e roubado, à sombra de um absolutismo ditatorial. Assassinado covardemente por um militar criminoso, depois de morto degolaram-no e mandaram a cabeça ao governador ignóbil...
Acusado pelos miguelistas retardados, os povos de Catumbela (entre o Lobito e Benguela) ergueram-lhe um rústico monumento do jardim público, agradecendo não só a fundação da importante Companhia Agrícola Cassequel, mas também as condições de trabalho dos seus colaboradores. Há cerca de trinta anos visitei esse jardim público – com o Padre e jornalista José Vicente - e fui agradavelmente surpreendido com a existência do monumento em memória de João Brandão: havia um resguardo de vidro com dezenas de cartas de admiradores anônimos exaltando as qualidades de trabalho e de apoio recebidas do benfeitor de Midões.
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