sábado, 22 de agosto de 2009

Entrevista com Fernando Pessoa sobre os problemas econômicos - Parte 2


João Alves das Neves - Como se fosse uma fábula comercial... Que com isso dizer que a comercialização de qualquer produto, por mais trivial que seja, deve ser preparada com o maior rigor, sendo preciso agir sempre como se tratasse de um grande empreendimento?

Fernando Pessoa - Esta história, em aparência tão simples, encerra um ensinamento que todo o comerciante, que não o seja simplesmente por brincar ás vendas, devia tomar a peito, compreender na sua essência. Um comerciante, qualquer que seja, não é mais que um servidor do público, ou de um público; e recebe urna paga a que chama o seu "lucro", pela prestação desse serviço. Ora toda a gente que serve, deve, parece-nos, buscar agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a quem se serve – mas estudá-lo sem preconceitos nem antecipações; partindo, não do principio de que os outros pensam como nós ou devem pensar como nós – porque em geral não pensam como nós -, mas do principio de que, se queremos servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como eles: o que temos que ver é como e que eles efetivamente pensam, e não como é que nos seria agradável ou conveniente que eles pensassem.

João Alves das Neves
- Uma das variantes do "marketing", com fórmulas dia-a-dia mais sofisticadas, para atingir cada vez mais eficiente mente o mercado...

Fernando Pessoa - O estudo do público, isto é, dos mercados, é de três ordens - econômico, psicológico e propriamente social. Isto é, para entrar num mercado, seja doméstico ou estranho, é preciso; 1) saber as condições de aceitação econômica do artigo, e aqueles em que trabalha, e em que oferece, a concorrência; 2) conhecer a índole dos compradores, para à pane questões de preço, saber qual a melhor forma de apresentar, de distribuir e de reclamar o artigo; 3) averiguar quais são as circunstâncias especiais, se as houver, que, de ordem profunda social e política, ou superficial e de moda ou de momento, obrigam a determinadas correções no resultado dos dois estudos anteriores.

João Alves das Neves - É da sua autoria a frase de que "na realidade não há comércio: há comércios" e por isso lhe perguntamos: o que pensa desse "comércios" e dos comerciantes em geral?

Fernando Pessoa - É espantoso - não: é pavoroso - o número de comerciantes que cotam para um mercado, estrangeiro e até nacional, espontaneamente ou solicitados, sem averiguar se não estarão cotando um preço que seja um disparate de tal ordem que os desqualifique intelectualmente - e a desqualificação intelectual é por vezes pior que a moral no espírito dos que recebem a oferta. Quando um comerciante, que use a cabeça para fins mais interiores que a colocação do chapéu, verifica que lhe é possível cotar convenientemente para certo mercado, deve responder a um pedido de cotação que, dadas estas ou aquelas circunstâncias, não pode cotar nesse momento: ou que oferece a um preço mais alto que o do mercado (mas mostre que conhece o preço do mercado), porém que o artigo, se é mais caro, é porque é melhor; ou que, por não ter nesse momento disponível senão um tipo desse artigo, não pode cotar senão em determinadas condições.

João Alves das Neves - Você falou de preços para os mercados nacional e internacional, mas não exprimiu a sua opinião sobre a problemática das exportações: o que acha desta questão, hoje vital para todos os países, industrializados ou não?

Fernando Pessoa - Suponhamos que temos que introduzir determinado artigo na Itália. Nem para todos os artigos se dará - mas sem dúvida haverá alguns para cuja colocação importe considerar (á parte as circunstâncias econômicas, de que não estamos agora tratando) o italiano como italiano; o italiano como romano, veneziano, genovês, etc.; o italiano como governado pelo regime fascista; o italiano como crescentemente detestador da França; e assim indefinida, mas, ao mesmo tempo, muito definitivamente.

Um industrial que inventasse e produzisse um tipo de "whisky" novo, bom e barato, teria um mercado certo nas Ilhas Britânicas; mas, se tivesse a lembrança de ornar as garrafas desse liquido de um rótulo com a bandeira daquele império, não deveria admirar-se de ver a maioria dos habitantes do Estado Livre da Irlanda impor-se o horroroso sacrifício de o não beber. O produto estava psicologicamente certo para esse meio, mas estava "socialmente" errado. Parece-nos que assim transmitimos claramente ao leitor a idéia da distinção entre o critério psicológico e o, por assim dizer, sociológico no estudo comercial dos mercados:

João Alves das Neves - Referiu-se a um produto "socialmente" errado e gostaríamos de dar a essa palavra outra conotação hoje tão discutida: o lucro deve ser abolido? È o que advogam os comunistas. Mas não acha que o comércio, seja qual for o regime econômico ou político, jamais poderá desprender-se do seu conteúdo social?

Fernando Pessoa - A atividade social chamada comércio; por mal vista que esteja hoje pelos teoristas de sociedades impossíveis, é, contudo um dos dois característicos distintivos das sociedades chamadas civilizadas. O outro característico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comércio e a cultura houve sempre uma relação não bem explicada, mas observada por muitos. É, com efeito, notável. que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercício assíduo do comércio. Comercial, eminentemente comercial, foi Atenas. Comercial, foi Florença.

A relação entre os dois fenômenos é ao mesmo tempo de paralelismo e de causa-e-efeito. Toda a vida é essencialmente relação, e a vida social, portanto, é essencialmente relação entre indivíduos, quando simples vida social; e entre povos, quando vida civilizacional.

João Alves das Neves - É indubitável que essas concepções, embora permaneçam atuais, se referem particularmente ao passado. Quais são hoje as características que melhor podem definir a atividade econômica, desde a produção á comercialização, incluindo necessariamente a exportação?

Fernando Pessoa - Três são as influências que geraram, e estão gerando, a transformação do segundo período no terceiro:

1) a intensificação de todos os fatores que criaram o segundo período, incluindo o próprio individualismo - intensificação porém tão grande que a diferença entre os dois períodos, de quantitativa passou a ser qualitativa;

2) o aparecimento nítido de concorrências nacionais, organizadas e definidas, umas vezes reforçando, outras sobrepondo-se ás concorrências individuais;

3) o reaparecimento, e desenvolvimento rapidíssimo, do principio sindical.

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