quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Entrevista com Fernando Pessoa sobre os problemas econômicos - Parte 3


João Alves das Neves - A propósito dos sindicatos, o que acha da evolução até os tempos modernos?

Fernando Pessoa
- O principio sindical - propriamente reacionário ou retrógrado, pois que é uma reversão ás corporações medievais - emergiu nas classes operarias, e de ai galgou para todas as outras. Como, seja mau ou bom, do ponto de vista social, sempre é um elemento de coordenação, temos nele mais um elemento que se refletiu no espírito geral e o impediu mais para se compenetrar da necessidade de organização.

Acresce que o espírito de classe ou de profissão, que ele tende a criar, tem também efeitos de rigorosa especialidade, onde esse espírito não seja apenas político. Assim, no caso das associações comerciais, gerais e especiais, e das câmaras de comércio, se estabeleceu para o comerciante individual uma maior facilidade de estudar a sua profissão, ou o ramo especial dela que exerce. E o espírito geral de organização com isto necessariamente se organizou.

João Alves das Neves
- De certo modo se relaciona com a ação sindical a participação- do Estado no plano econômico, dia-a-dia mais acentuada. O que pensa da crescente estatização?

Fernando Pessoa - A administração de Estado só é possível quando é inevitável e só é inevitável num caso anormal, a guerra e, ainda assim, só para certas indústrias ou comércios. Como, porém, nas sociedades chamadas civilizadas, as atividades normais são todas de ordem pacifica e a guerra, motivando a suspensão de atividades pacificas, implica a suspensão da própria essência do que constitui uma sociedade civilizada, o fato de que o Estado só pode utilmente administrar um comércio ou uma indústria em tempo de guerra é mais um argumento contra o exercício normal pelo Estado desse comércio ou dessa indústria.

A administração pelo Estado de uma indústria ou de um comércio é prejudicial ao Estado, porque todo o comércio (ou indústria) mal administrado é prejudicial a si mesmo: e é prejudicial á indústria ou ao comércio particular, que por ela fica proibido. Só pode, em certos casos, beneficiar o consumidor; porque pode bem ser que o produto vendido o seja em condições anormalmente favoráveis. Há serviços de Estado, em muitos países, que trabalham com déficit previsto para beneficiar o consumidor. Como, porém, esse consumidor é ao mesmo tempo o contribuinte, o que o Estado lhe dá com a mão direita, terá fatalmente que tirar-lho com a esquerda. O consumidor é, no fim, quem paga o que deixa de pagar.

João Alves das Neves - Á estatização deve preferir-se, pelo que se deduz das considerações anteriores, a livre-empresa?

Fernando Pessoa - O regime de liberdade apresenta, a nosso ver, cinco característicos: três que são vantagens, dois que são desvantagens.

É natural, estimula a proficiência técnica, e tende a manter os preços no mínimo possível: estas são as vantagens. É essencialmente incoordenado e instável e, quando degenera, toma-se uma tirania pior que a de qualquer outro sistema: estas são as desvantagens.

João AJves das Neves - As criticas feitas hoje a esse regime econômico voltara-se, sobretudo, para as multinacionais. O que acha da ação desses grupos de empresas, cujos capitais são por vezes totalmente estrangeiros?

Fernando Pessoa - O monopólio espontâneo, ou natural, de que os chamados trusts são o exemplo típico, forma-se por agrupamento de empresas, ou por absorção de umas por outras ou várias por uma só. O monopólio espontâneo apresenta os característicos que já indicamos como os do monopólio legal, porém com duas formidáveis exceções: como é natural, e nasce do próprio jogo das forças econômicas, tem a força orgânica, a brutalidade intima de qualquer força da natureza; como não é legal, não está sujeito à fiscalização, boa ou mi de espécie alguma. Desaba sobre a sociedade como uma tempestade ou um cataclismo; e os governos, ou hão de deixá-lo esmagá-la ou, se o quiserem combater, hão de colocar-se em situação falsa, pois, não havendo nele nada de ilegal, terão, para o combater, que sair eles da legalidade.

João Alves das Neves - Do combate entre os defensores das idéias socializantes e os que proclamam a necessidade da livre-empresa, o que substituirá no mundo conturbado em que vivemos?

Fernando Pessoa - A sociedade é um sistema de egoísmos maleáveis, de concorrências intermitentes. Cada homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como individuo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opôe-se-lhes. Como sociável, parece-se com todos os outros homens e, porque se parece agrega-se-lhes. A vida social do homem divide-se, pois, em duas partes: uma parte individual em que é concorrente dos outros, e tem que estar na defensiva e na ofensiva perante eles; e uma parte social, em que é semelhante dos outros, e tem tão somente que ser-lhes útil e agradável.

João Alves das Neves
- Muitas perguntas poderiam ser ainda feitas a Fernando Pessoa sobre os problemas econômicos, temas que só – estão aflorados nas suas obras mais conhecidas. E, no entanto, o escritor viveu intensamente todos esses problemas, tanto mais que a sua 'vida prática" ele a passou no comércio. Revelando-a agora, desejamos ter contribuído para divulgar mais uma das inúiueras facetas do inventor dos heterônimos. Não encerramos, porém, o diálogo com o extraordinário poeta e ensaísta sem formularmos a pergunta que, desde o inicio desta entrevista, era imperioso fazer=lhe. Referimo-nos, é evidente, à situação portuguesa, que era grave antes do 25 de abril, em virtude, principalmente, das guerras na África, mas que muito confusa se tomou depois, em todos os domínios, em particular no da economia.

Como poderão os portugueses enfrentar as suas imensas dificuldades atuais?

Fernando Pessoa
- O primeiro passo para uma regeneração, econômica ou outra, de Portugal é criarmos um estado de espírito de confiança - mais, de certeza - nessa regeneração. Não se diga que "os fatos" provam o contrário. Os fatos provam o que quer o raciocinador. Nem, propriamente, existem fatos, mas apenas impressões nossas a que damos, por conveniência, aquele nome. Mas, haja ou não latos, o que é certo é que não existe ciência social - ou, pelo menos, não existe ainda. E como assim é, tanto podemos crer que nos regeneraremos, como crer o contrário. Se temos, pois a liberdade de escolha, por que não escolher a atitude mental que nos é mais favorável, em vez daquela que nos é menos?

As respostas de Fernando Pessoa foram reproduzidas integralmente dos seus próprios textos.

(Publicado originalmente no semanário de economia Revista Banas, n.° 1085, 17/02/1975, São Paulo e reproduzido no Livro organizado por mim: Fernando Pessoa e a Comunicação Social, ed. Universitária, 2003). – Link direto para aquisição da obra: http://www.submarino.com.br/produto/1/220207?franq=134562

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