quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

PREFÁCIO DO LIVRO "DICIONÁRIO DE AUTORES DA BEIRA-SERRA"

À GUISA DE INTRÓITO
*Profª Drª. Regina Anacleto,
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Escrever a apresentação do livro de João Alves da Neves intitulado “Dicionário de Autores da Beira-Serra” representa, para mim, uma dupla satisfação. Em primeiro lugar, porque se trata de um Amigo que, desde há muito, me habituei a admirar e a estimar; depois, porque o trabalho agora dado à estampa – mais um saído da sua brilhante pena – resultou de um labor de pesquisa levando a cabo ao longo de mais de vinte anos em jornais, arquivos e bibliotecas, transformando-se num instrumento de trabalho indispensável para todos aqueles que queiram conhecer melhor essa região, tantas vezes tão maltratada e esquecida pelos poderes públicos, mas tão rica de belezas naturais e de qualidades humanas.

Dar corpo, na escrita estilizada de um Dicionário, às gentes de uma região significa, pois, no livro que se segue, ultrapassar a geografia humana para pensar uma geografia cultural. Por isso, o Dicionário de J. Alves das Neves é uma espécie de memorial de um espaço, um pergaminho identitário fundamental para o futuro. Explico-me de seguida. Um povo só é rico quando tem história e quando pugna pela salvaguarda desse valor, isto é, desse patrimônio, porque ele evidencia o significado estático ou cultural dessa sociedade e funciona como seu suporte e garante. Trata-se de um conjunto de “bens” que uma geração transmite à seguinte, a fim de que se constituam num meio de compreensão da essência da sua própria história.

Este patrimônio, ou se quiser esta história, este “dom”, engloba tudo o que tem significado perene, tanto para a vida cultural e física do homem, como para a existência e afirmação das mais diversas comunidades, passando pela vicinal, pela concelhia, pela regional, pela nacional ou até mesmo pela internacional.

As comunidades, como tais, necessitam de ancoradouros de memória, de sítios, de valores e de padrões. Dito por outras palavras, necessitam de um patrimônio, ou de uma história, que seja o fundamento da sua consciência e lhes garanta a perspectiva do futuro.

A memória coletiva de uma determinada população estende-se aos territórios onde vive, aos seus monumentos, aos vestígios do passado e do presente, aos seus problemas, à sua cultura (material e imaterial) e, nas suas mais diversificadas valências, às pessoas. No entanto, a mensagem que nos proporcionam, transmite-se de geração em geração, ultrapassa a morte e, através do lento, mas imparável, devir do processo histórico, fornece identidade ao ser humano. Esse passado, que é memória, toma corpo e, porque ninguém pode viver em permanente conflito com a sua memória, acaba por se tornar presente e futuro.

A história vive e projeta-se através do passado humano e quanto mais forte, profundo e saudável esse passado for, maior força imprime a essa mesma história, no sentido de ela se poder afirmar com uma vitalidade cada vez mais sólida.

Toda a comunidade humana, qualquer que ela seja, sempre teve e, antropologicamente, deverá ter as suas referências de memória, isto é, os seus “monumentos”, mesmo que estes sejam orais. Trata-se de um patrimônio que funciona como garante de identidade.

A defesa deste patrimônio, acumulado ao longo de séculos, é que nos individualiza, mas não pode deixar de ser valorizado, na medida em que marca a nossa identidade cultural e só a preservação dessa mesma identidade nos permitirá uma individualização forte, sobretudo frente à crescente globalização, ou, quiçá melhor dito, massificação.

Assim, João Alves das Neves, com seu “Dicionário de Autores da Beira-Serra”, que apresenta cerca de trezentas entradas, onde averbou a biografia de escritores, professores universitários, artistas, músicos, cientistas e outros intelectuais nascidos ou ligados à região serrana, ajuda a preservar este patrimônio, não permitindo que ele se transforme em pó, passível de ser disperso por forte vendaval.

Alguns destes verbetes já foram publicados em “A Comarca de Arganil”, o primeiro jornal em que o autor, ainda um jovem sem créditos firmados, iniciou as suas, então amadoras, lides jornalísticas.

A opção por esta forma es escrita – a de um Dicionário – parece, de algum modo, espelhar o percurso biográfico do seu autor. Ensaísta e jornalista, João Alves das Neves nasceu no Pisão e estudou em Lisboa, Porto e Paris, onde se formou na École Supérieure du Jornalisme. Em Lisboa foi redator do “Diário Ilustrado” e da “Agência France Presse”, tendo, também, colaborado em “O Primeiro de Janeiro”, “Diário Popular”, “Nova Renascença” e na revista “Ocidente”.

Entre 1951 e 1954 trabalhou na Radiodifusão Francesa, mas, no ano de 1958, partiu rumo ao Brasil, onde se fixou.

Tornou-se editorialista de “O Estado de S. Paulo” e foi, naquele país, diretor da revista “Portugália”, fundador e diretor das revistas “Comunidades de Língua Portuguesa” e “Gazeta do Descobrimento”, em Portugal, fundou e dirige a revista “Arganília”.

Chefiou o departamento de Jornalismo e exerceu a docência na Faculdade de Comunicação Social “Cásper Libero”, a mais prestigiada escola de jornalismo do Brasil, tendo ainda lecionado no Porto, na Escola Superior de Jornalismo e no Instituto Superior de Ciências da Informação e da Empresa.

Alves das Neves conta com mais de duas dezenas de livros editados, onde aborda aspectos diversos das letras portuguesas, brasileiras e africanas de expressão portuguesa. Além disso, dedica uma atenção muito especial à obra pessoana, sendo até presidente do Centro de Estudos Americanos Fernando Pessoa, sediado em São Paulo. Dada a impossibilidade de enumerar, nesta breve nota introdutória, os seus muitos trabalhos, não gostaria, no entanto, de passar à margem de “Poesias Ocultistas de Fernando Pessoa” e “Padre Antônio Vieira, o Profeta do Novo Mundo”.

Não quero, ainda, deixar de referir o seu artigo “Homenagem a Fernando Pessoa” que lhe valeu a atribuição do prêmio Esso de Informação Cultural; trata-se de um prestigiado (e cobiçado) galardão que, no Brasil, promove o reconhecimento do mérito dos profissionais de Imprensa através da indicação e escolha dos melhores trabalhos publicados em jornais e revistas.
Com uma obra tão vasta e valiosa, desenvolvida ao longo de meio século, não admira que lhe tenham sido atribuídas várias distinções e condecorações, tanto pelo governo brasileiro, como pelo português; este agraciou-o com a Comenda da Ordem do Infame D. Henrique.
Soma-se, agora, a toda esta panóplia bibliográfica, o “Dicionário de Autores da Beira-Serra”, obra que culmina um trabalho ingente e se vai transformar numa referência, até porque concede às personagens que, de algum modo, se encontram ligadas à cultura, tanto às do passado, como às do presente, a possibilidade de perspectivar o futuro.

Certamente que é este o objetivo do “Dicionário de Autores da Beira-Serra” que a Dinalivro, pela mão de João Alves das Neves, ora coloca diante de todos nós; certamente que é este também o objetivo do autor, consciente de que a obra até agora publicada carecia de uma síntese humanista que, ao invés de a fechar sobre si própria, a abre ao seu mundo genuíno e às memórias que dela emanam.

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