
Testemunha Mário Anacleto que nas suas viagens pelo estrangeiro e nas conversas com músicos e melómanos, populares, cultos e sabedores, por vezes lhe perguntam "se o Fado é só português, ou , de onde é que os portugueses aprenderam o Fado, ou ainda. Se há mais intérpretes do fado, para além da grande Amália Rodrigues. E perguntam , os mais avisados e familiarizados com conceitos e especificidades, o que significa a palavra saudade que parece ser única no léxico universal".
Grande chão teríamos de andar se fôssemos em busca das parecenças aceites e recusadas da Saudade (sobre a qual Carolina Michaellis de Vasconcellos escreveu longamente e situou o Fado nos começos do século XIX, outros envolvem o Rei D. João VI no fio de Ariadane), ao passo que o nosso mestre cantor e professor estranha que toda a gente aceita que o Lied indiscutivelmente alemão, a Napolitana de Nápoles e o Samba brasiliano: "Então porquê perguntar se o Fado é português. Se ele é?".
As dúvidas são incompreensíveis e quem se aproveitou delas foram os politicões, desde os fascistas aos "abrilistas", a fim de atacar ou defender, consoante se deduz do capítulo do livro, sob o titulo de "visões de um Estado Velho". Até o cinema e o rádio se aproveitaram do Fado: "Ao povo poderiam tirar tudo - escreve M. Anacleto. E quase tudo lhe tiraram, menos a alma, o pensamento, a revolta, a generosidade e a esperança de tudo melhorar." E veio a televisão, que tirou o seu quinhão fadista, retribuindo o quê?
Isto seria em Lisboa: e em Coimbra? Os "itinerários de uma cultura viva": "Embora o fado de Coimbra seja muito mais recente que o movimento dos poetas trovadores de antanho ou até que as histórias relacionadas com as ‘tempestuosas’ e ardentes ligações humanas e amorosas de Inês com D. Pedro, ou até mesmo que o período seiscentista dos poetas palacianos como Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Garcia de Resende ou Sá de Miranda, é fatal esta memória que nos faz recuar a esse período da História da expressão literária que, em Portugal, está na gênese de uma literatura ímpar no mundo dos cambiantes de todos os reflexos e com uma riqueza humana e cultural de valor inestimável".
Outros documentos são interpretados pelo musicista, realçando o contribuo conimbricense ao Fado da cidade por excelência universitário à multiplicidade ulissiponense – e são apontados os nomes de numerosos participantes acadêmicos, incluindo Zeca Afonso, Fausto, Adriano, Vitorino, Manuel Freire, "entre vários outros de grande energia e criatividade, sonhando um novo capítulo de um fadário em constante renovação, de letras, de músicas e de intérpretes".
Com esta ligação evidente de Lisboa e Coimbra, pode garantir-se a utonomia portuguesa da História do Fado, através dos séculos. E se os trovadores não eram fadistas na genuína acepção do termo é por demais notório que, a-par da afluência árabe (e africana) ou mesmo brasileira (pois Luís da Câmara Cascudo a reconhece no Dicionário do Folclore Brasileiro- e não só ele, como Kilza Setti e mais especialistas brasileiros), as raízes do Fado estão em Portugal, o que não diminui a contribuição de outras fontes).
A História do Fado tem autonomia portuguesa. E, em conclusão, menciona-se a observação autorizada do musicista brasileiro Mário de Andrade, na Pequena História da Música: "A influência portuguesa foi a mais vasta de todas (na Música Brasileira). Os portugueses fixaram o nosso tonalismo harmônico; nos deram a quadratura estrófica; provavelmente a síncope que nos encarregamos de desenvolver ao contacto da pererequice rítmica do africano; os instrumentos europeus, a guitarra (violão), a viola, o cavaquinho, a flauta, o oficicleide, o piano, o grupo dos arcos; um dilúvio de textos; formas poético-líricas, que nem a Moda, o Acalanto, o Fado (inicialmente dançado): danças que nem a Roda, infantil: danças ibéricas que nem o Fandango: danças dramáticas que nem os Reisados, os Pastorais, a Marujada, a Chegança, que às vezes são verdadeiros autos. Também de Portugal nos veio a origem primitiva da dança dramática mais nacional, o Bumba-meu-Boi."
Tudo isto nos é sugerido por Mario Anacleto no seu valiosíssimo estudo Fado, itinerários de uma cultura viva.
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