O Fado está no íntimo de escritores portugueses, mesmo que jamais sido "fadistas", de acordo com o sentido que é hoje corrente. E o autor de Fado, itinerários de uma cultura abre o seu livro com versos de António Nobre, como símbolo de uma portugalidade que está na raiz da "canção nacional" que tantos lhe atribuem.
Testemunha Mário Anacleto que nas suas viagens pelo estrangeiro e nas conversas com músicos e melómanos, populares, cultos e sabedores, por vezes lhe perguntam "se o Fado é só português, ou , de onde é que os portugueses aprenderam o Fado, ou ainda. Se há mais intérpretes do fado, para além da grande Amália Rodrigues. E perguntam , os mais avisados e familiarizados com conceitos e especificidades, o que significa a palavra saudade que parece ser única no léxico universal".
Grande chão teríamos de andar se fôssemos em busca das parecenças aceites e recusadas da Saudade (sobre a qual Carolina Michaellis de Vasconcellos escreveu longamente e situou o Fado nos começos do século XIX, outros envolvem o Rei D. João VI no fio de Ariadane), ao passo que o nosso mestre cantor e professor estranha que toda a gente aceita que o Lied indiscutivelmente alemão, a Napolitana de Nápoles e o Samba brasiliano: "Então porquê perguntar se o Fado é português. Se ele é?".
As dúvidas são incompreensíveis e quem se aproveitou delas foram os politicões, desde os fascistas aos "abrilistas", a fim de atacar ou defender, consoante se deduz do capítulo do livro, sob o titulo de "visões de um Estado Velho". Até o cinema e o rádio se aproveitaram do Fado: "Ao povo poderiam tirar tudo - escreve M. Anacleto. E quase tudo lhe tiraram, menos a alma, o pensamento, a revolta, a generosidade e a esperança de tudo melhorar." E veio a televisão, que tirou o seu quinhão fadista, retribuindo o quê?
Isto seria em Lisboa: e em Coimbra? Os "itinerários de uma cultura viva": "Embora o fado de Coimbra seja muito mais recente que o movimento dos poetas trovadores de antanho ou até que as histórias relacionadas com as ‘tempestuosas’ e ardentes ligações humanas e amorosas de Inês com D. Pedro, ou até mesmo que o período seiscentista dos poetas palacianos como Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Garcia de Resende ou Sá de Miranda, é fatal esta memória que nos faz recuar a esse período da História da expressão literária que, em Portugal, está na gênese de uma literatura ímpar no mundo dos cambiantes de todos os reflexos e com uma riqueza humana e cultural de valor inestimável".
Outros documentos são interpretados pelo musicista, realçando o contribuo conimbricense ao Fado da cidade por excelência universitário à multiplicidade ulissiponense – e são apontados os nomes de numerosos participantes acadêmicos, incluindo Zeca Afonso, Fausto, Adriano, Vitorino, Manuel Freire, "entre vários outros de grande energia e criatividade, sonhando um novo capítulo de um fadário em constante renovação, de letras, de músicas e de intérpretes".
Com esta ligação evidente de Lisboa e Coimbra, pode garantir-se a utonomia portuguesa da História do Fado, através dos séculos. E se os trovadores não eram fadistas na genuína acepção do termo é por demais notório que, a-par da afluência árabe (e africana) ou mesmo brasileira (pois Luís da Câmara Cascudo a reconhece no Dicionário do Folclore Brasileiro- e não só ele, como Kilza Setti e mais especialistas brasileiros), as raízes do Fado estão em Portugal, o que não diminui a contribuição de outras fontes).
A História do Fado tem autonomia portuguesa. E, em conclusão, menciona-se a observação autorizada do musicista brasileiro Mário de Andrade, na Pequena História da Música: "A influência portuguesa foi a mais vasta de todas (na Música Brasileira). Os portugueses fixaram o nosso tonalismo harmônico; nos deram a quadratura estrófica; provavelmente a síncope que nos encarregamos de desenvolver ao contacto da pererequice rítmica do africano; os instrumentos europeus, a guitarra (violão), a viola, o cavaquinho, a flauta, o oficicleide, o piano, o grupo dos arcos; um dilúvio de textos; formas poético-líricas, que nem a Moda, o Acalanto, o Fado (inicialmente dançado): danças que nem a Roda, infantil: danças ibéricas que nem o Fandango: danças dramáticas que nem os Reisados, os Pastorais, a Marujada, a Chegança, que às vezes são verdadeiros autos. Também de Portugal nos veio a origem primitiva da dança dramática mais nacional, o Bumba-meu-Boi."
Tudo isto nos é sugerido por Mario Anacleto no seu valiosíssimo estudo Fado, itinerários de uma cultura viva.
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