Nos últimos anos tem sido posta em questão a origem do Fado: será que é brasileiro? Ou foi inspirado pelos árabes? Mas então por que não há música igual nem parecida no Brasil nem tão pouco em nenhum dos países árabes? E por que motivo é hoje simplesmente cantado pelos portugueses, alguns dos quais o apelidaram até de "canção nacional"?
Temos de reconhecer que certos musicólogos lusitanos consideraram que o fado é um gênero musical inferior, conforme sublinharam Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes Graça e outros intelectuais de reconhecido mérito – pretensão que é contestada por vários intelectuais de alto valor – e apontam-se dois grandes poetas contemporâneos: José Régio e David Mourão-Ferreira, que não estão sós... Porém, como é que ficamos?
Foi publicado há meses o livro Fado, itinerários de uma cultura viva (1), de Mário Anacleto, professor, cantor e estudioso da Música, com vários estudos não especulativos e bem documentados. Se exceptuarmos os casos de Luís F. Branco, Lopes Graça e de outros especialistas competentes, aos quais se dá o direito da divergência, muitos dos adversários do Fado não buscam as origens desta faceta da música popular portuguesa (porque o é, independentemente da posição assumida). São contra "porque sim" ou são a favor "porque não"... Ora, as coisas não podem ficar assim!
O Prof. Mário Anacleto analisa o problema com seriedade e fundamenta o que pensa ao dizer peremptoriamente: "O Fado é português, claro.". E baseia a sua posição no conhecimento que tem da matéria e até de inúmeros "especialistas" . Colocamo-los entre aspas porque certos deles são ardentemente apaixonados – e esta não é a atitude do nosso autor, que recorreu a uma ampla bibliografia "fadista", pró e contra – é quase uma biblioteca de 65 livros que abordam o tema, directa ou indirectamente. Não dispomos dessa colecção de análises e interpretações, mas salientamos o Fado – Origens líricas e motivação poética, de Mascarenhas Barreto (2), pois nos parece que é bem estruturado, histórica e culturalmente:
"Chamam ao Fado a ‘canção nacional". Ora, o Fado, hoje considerado elemento do folclore português, não é cantar regional, nem sequer canção-tipo, tão vário é o género das suas melodias e intenção dos seus poemas. (...) É bem patente a afinidade do Fado com a poesia trovadoresca medieval. Nela se manifesta também a influência das melopéias da população mourisca vencida, espalhada nos arredores de Lisboa, e ainda, na sua forma mais moderna, a influência dos ritmos primitivos, transmitida pelos mareantes que regressavam de todos os mares do Mundo, saudosos do exotismo dessas terras distantes."
Mário Anacleto usa mais argumentos e chega à mesma conclusão. E se assim não fosse como admitir que o velho LP Com que voz" (3) é um dos discos mais portugueses de Amália Rodrigues, porque traça a linha directa que vem de Luís de Camões até à brasileira (tão próxima de nós) Cecília Meireles, passando por P. Homem de Melo, Ant. de Sousa, David M.-F. e C. Ary dos Santos, O’Neill e Manuel Alegre. E, daí, a pergunta: o que têm a ver as alusões de Tinhorão e de mais dois ou três com as ligações com o Brasil?, tal como foram romanceadas nas Memórias de um Sargento das Milícias (4), lembradas por Mário de Andrade (o escritor mais importante do modernismo brasileiro), sob a alegação de que somente no Brasil se dançava o Fado – o que não corresponde à "moda" ainda hoje bailada nalgumas terras da Província Lusíada?.
O Prof. Mário Anacleto documentou perfeitamente a raiz árabe da "canção nacional" e é tão claro como a "modinha" pode ter dado achegas ao Fado, mas, por outro lado, lembramos as interpretações "fadistas"de Nelson Gonçalves e de outros antigos sambistas brasileiros (os actuais fogem deste paralelo como o diabo da Cruz!). Mas aceitemos a declaração de que "o Fado é português, claro", antes de examinarmos outros conceitos em torno do oportuno livro Fado, itinerários de uma cultura viva."
Bibliografia:
(1) Ed. Millbooks, Porto, 2008. Licenciado em Filosofia pela Universidade do Porto, Mário Anacleto é Mestre pela mesma escola superior e pela Universidade Complutense (Madrid) e Doutor em Música pela Universidade de Bucareste. Fez o Curso Superior de Canto do Conservatório de Música do Porto. É autor de 3 teses universitárias sobre temas musicais e é também professor e cantor de música portuguesa (fado e ópera) tendo realizado concertos em Portugal, Espanha, Brasil, Itália, Roménia Estados Unidos e El Salvador
(2) Fado – Origens líricas e motivação poética, Ed. Aster, Lisboa, 1980, 589 págs., capa de Fontes de Melo, ilustrações de José Pedro Sobreiro
(3) Gravadora Valentim de Carvalho, música de Alain Oulman, Lisboa, s/d
(4) De Manuel António de Almeida, publicada em folhetins no Correio Mercantil, Rio de Janeiro, 1852/53, 1ª. ed. em 2 vols.(1854/55), Rio de Janeiro
Um comentário:
Caro amigo Prof. João,
É verdadeiramente notável a competência, agilidade, clareza e ao mesmo tempo profundidade de abordagens que vem impingindo a este seu blog. Temas relevantes para todos aqueles que se interessam pela cultura e literatura lusófonas. Parabéns, pela surpreendente manutenção da qualidade nos atributos jornalísticos e literários ao longo de décadas inalterados. Abraço e admiração da
dalila teles veras
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